terça-feira, 26 de novembro de 2013

A diferença entre suicídio e martírio é a cobertura da imprensa

Nota da UNIDADE VERMELHA sobre o recente caso do suicídio da jovem Julia Rebeca.

Pergunte para pessoas na rua sobre o quão acha que sociedade é evoluída sexualmente, a maioria vai te olhar e te responder com toda a franqueza do muito que somos uma sociedade libertária, onde todos fazem e deixam de fazer a seu bel prazer, compararão a décadas passadas e dirão que a mulher é dona do seu corpo, do seu bem estar, que junto com a sua participação na sociedade emergiu com ela sua liberdade sexual. Te dirão que coisas que não eram aceitas, hoje são corriqueiras e que as cenas das novelas das 20h são retrato da liberdade sexual expressa em nossa sociedade. 

Sob todas as afirmações a cima seria estranho, se duas cometessem suicídio e outra criasse um grupo de apoio a garotas que foram expostas por meios virtuais, mas aconteceram.


Os casos não são isolados, quantas Frans, Giihs e Julias existiram e existem e não ganharam tanta notoriedade? Que morreram e ninguém consegue explicar até hoje porque aconteceu ou que vivem dentro de uma jaula psicológica depois de se ver tão exposta. Porque se é certo na TV é errado na vida real? Porque em uma sociedade midiática, com conceitos comprados em propagandas, onde o comportamento é pautado pelo que se vê na TV, fazer igual a TV se tornou errado?

Você liga a TV no horário nobre e vê o “estereótipo da piriguete”, ela usa roupa curta, salto alto, maquiagem pesada, vai atrás de homens com dinheiro, comete garfes e é sexualmente ativa. Você vai a um aniversário de criança e a garotinha de 4 anos de idade está dançando “vodka ou água de coco, pra mim tanto faz, eu já to cheio de tesão e cara vez eu quero mais”, essa criança de quatro anos está vendo TV no horário nobre com os pais na sala, a garota piriguete está lá. A garota da novela aparece com uma calça rosa e no outro dia todas as mulheres ao redor da garotinha também estão com a calça rosa, a Malvada da novela usa um Batom diferente e no outro dia todas as mulheres ao seu redor estão com o batom diferente, a mãe da garotinha usa o mesmo sinto da personagem principal, todos gostam, todos aplaudem e ligam a TV religiosamente para prever a próxima tendência. Então se aparece na TV é definitivamente um exemplo a ser seguido!

Por outro lado o Galã da novela fica com a piriguete, mas é apaixonado pela meiga e consciente personagem principal, ela é a personificação do que há de mais puro no mundo, ela é virgem, tem uma família estruturada, dinheiro, mas mesmo assim não liga, tudo o que ela sempre quis saber da vida é o amor. Ele é alto, bonito, pega várias e gosta de dar uns amassos com a dita piriguete, para ele é bem claro que ela é para esse tipo de coisa e a protagonista era a garota para casar. Ele não precisa estudar, ele não precisa ter responsabilidade, ele pode ir para quantas festas ele quiser, ele pode tratar mal a mãe, a moça que trabalha em sua cara (pode tentar ficar com ela também), mas tudo bem porque ele ainda é o cara que a piriguete e a mocinha gostam. A garotinha de 4 anos também vê isso.

Aos 15 anos ela ainda prefere gostar mais do jeito da piriguete, ela não é mais virgem, mas sua mãe acha que ela é muito nova para uma iniciação sexual, prefere achar que ela ainda tem quatro anos e que nunca viu as cenas de sexo do horário nobre, além de que tem certeza que sua filha é o tipo de garota para casar, sua filha por outro lado jura de pés juntos que nunca faria nada assim, a garota acha um Galã, ele acha que ela não é o tipo de menina pra namorar, mas seus amigos todos estão falando de sexo e ele precisa provar sua masculinidade porque todos mostram, ele também precisa, seu pai o cobra, seus amigos, seu avô e seus tios; não poderia ele trair a sua própria virilidade. Todo mundo faz.

Sexta a noite o Galã convida a garota para sua casa, os dois sabem o que estão fazendo e fazem bem, se divertem e ele filma, mas é só pra diversão, ela acredita, ela gosta dele, porque não acreditaria? Ele é o galã.

O garoto conta para seus amigos todos e eles não acreditam, ela é “rodada”, mas ele tinha que provar o que fez, então ele pega o telefone celular e passa o vídeo para o melhor amigo, que promete não contar para ninguém. Em uma semana toda a escola já viu o video, o Galã pensa que fez errado, mas tudo bem, ela não era a garota para casar, ele conseguiu o que queria, seus amigos o acham legal e as meninas pra casar demonstraram um repentino interesse por ele.

O vídeo, a fama, a vergonha se espalha e a garota é nomeada por todos os pejorativos que nunca imaginou receber, mas tá na TV, todo mundo não faz o que tá na TV? Sua mãe está desapontada, seu pai não a olha, tudo o que ela tem é uma rede social, que ela desabafa, mas realmente acha que não há mais jeito para sua história, ela não é mais a garotinha dos pais, o garoto que ela gostava traiu a sua confiança e seus amigos a apontam como a nova pervertida da escola.

A hipocrisia da sociedade leva as pessoas a caminhos sem volta, alienadas de suas próprias escolhas, as pessoas são estereotipadas desde seu nascimento. Se você nasce mulher, você tem o dever (não a simples opção) de se manter bonita (nos padrões globo), magra (não tão magra), paciente, calma, madura, pronta para enfrentar qualquer adversidade, deve ter poucos namorados, quando traída você tem o direito de ficar chateada, mas só, você tem que estar pronta para perdoar, para casar quando ele quiser, ele, nunca ela, gostar de meninas não é muito bom, você deve querer ser mãe e seja uma boa mãe, caso contrário a sociedade colocará a culpa de tudo de ruim que seus filhos fizerem em você. Não vista roupa curta, não sente de perna aberta, não fale alto, não ria alto, não se exalte, não come muito, não beba muito, mulher que fuma é feio, goste de sexo, mas não demonstre que gosta de sexo, quando transar seja muito boa de cama, esteja sempre disposta caso contrário ele tem permissão pra arrumar outra...

A sociedade patriarcal, capitalista, hipócrita está matando mulheres, se não de fato, psicologicamente, fazem as mulheres definharem em seus psicológicos, em seus corpos, em suas vidas.

Em momento algum o homem é colocado em questão, ele é o poderoso que fica sentado em berço esplêndido à ele tudo é permitido, a ele tudo é possível, ter duas mulheres, não seguir moda, ficar fora de forma, maltratar, julgar quem é para casar e quem é para transar e claro expor isso ao seu bel prazer.

Liberdade sexual? Só até onde a sociedade achar que deve, dentro de um quarto e entre dez paredes, o sexo não deve ser visto de uma forma natural, afinal ninguém veio a terra depois de uma relação sexual. Sexo deve ser só para procriar e não por prazer...

Todo mundo faz sexo, se ainda não faz fará e mesmo que decida nunca mais fazer ainda o fez e ainda sentira alguma necessidade disso, é fisiológico, faz parte do ser humano, não existe sexo mais limpo ou mais sujo, não existem limites dentro do acordo que os dois fazem, mas o protagonista da história toda é o sexo, a garota fazendo sexo é errada, mas o garoto – que expôs o vídeo – é certo, ninguém nem toca no fato, ninguém nem se lembra dos caras que expuseram as garotas, eles aparecem como figurantes na história toda e não como fato-base, gerador de todo o problema. O homem novamente fica seu berço esplendido.

Não adianta traçarmos aqui um manual de conscientização anti-machismo, pró-feminismo, uma nova lei, uma punição mais rigorosa. O fato está tão intrínsecos dentro da sociedade que não seriam simples palavras politicamente corretas que fariam nossas meninas pararem de morrer, não serão elas as últimas vitimas desse sistema que é realmente sujo junto dos dogmas cristãos perversos e dominadores que foram tomados como verdades absolutas em nossas sociedades, mas que a denúncia fomente a luta pela sociedade igualitária, que acenda o questionamento e fortaleça a certeza dos que já estão nessa luta. 

- Combatente Emily